Mãe: não quero ensombrar o teu dia, assombrar o dia que para ti fizeram os fazedores comerciais de dias. O teu dia é, apesar de tudo, um dia justo, um dia que tu mereces infinitamente, muito além do comércio de merecimentos em que nos tornámos peritos e agiotas. Não quero negar-te as flores da justiça que para ti eu acho justas: as flores que nascem dos teus dedos quando plantas jardins no meu olhar.
Mas hoje deixa-me falar-te do mundo, mãe, e das desditas do mundo que as datas não compreendem nem comportam [não, mãe, não é do mundo impecável das datas que quero falar-te, do mundo afixado na parede, científico e neutro]. É do mundo mesmo que quero falar-te: do mundo em que todos giramos a uma velocidade constante e segundo uma inclinação necessária. Rodamos no mesmo sentido e tão desencontrados, mãe! É desse mundo que nos foi dado e nos corre nas veias que quero falar-te.
Quero dizer-te um segredo que eu pensei: reparaste nos joelhos famintos que fazem um H, que ligam pelo meio as duas colunas das pernas? São meus, mãe, são os meus joelhos, as minhas pernas de Homem que porventura nunca serei. Estou ao teu lado e por detrás de ti. As mãos pesam-me como se houvesse um mundo suspenso em cada uma delas. Não podes ver os meus olhos, mas eu vou dizer-te: olham na mesma direcção dos teus e, como os teus, são de gelatina e brometo de prata. Sim, mãe, é essa a nossa composição química para esta data que para ti fizeram os fazedores de datas. Somos figuras sem nome duma fotografia premiada, a câmara escura onde ousamos pensar o mundo em segredo.
Os fazedores de datas fizeram-te uma data e eu estou contente, apesar de tudo. Se eu te dissesse que me apetece chorar, não ficarias surpreendida. Mas não chorarei, mãe, porque tenho umas mãos grandes, com um mundo suspenso em cada uma delas. São grandes, mãe, e têm a articulação necessária para colher as flores que tu mereces. Não chorarei, não me apetece chorar o mundo. O que eu quero nesta data que para ti fizeram os fazedores de datas, sabes o que é? O que eu quero é mudar o mundo, mãe
Título: Carta a minha mãe sobre um segredo que eu pensei
Nuno Higino